sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Capítulos II, III, IV e V do romance policial "Um Vulto entre as Cortinas"


II

Helen era uma garota estudiosa, embora tímida e retraída por ter sofrido, no seu curto tempo de vida, infortúnios das poderosas mãos do destino. Tinha um corpo franzino, pele clara, cabelos loiros e longos e olhos castanhos que necessitavam de lentes corretoras.
Contava apenas onze anos de idade. Enquanto as demais crianças da sua idade viviam num mundo de alegria e brincadeiras, ela era reclusa, fechada em si mesma, prisioneira de um passado que insistia em estar sempre presente. Trazia no peito feridas de um sofrer que somente o futuro seria capaz de curar. Nesse breve período de existência perdera seu pai, que a abandonara aos dois anos de idade, quando num acidente de carro, dirigindo bêbado, causara a morte de sua mãe. Condenado pelo acidente, cumpriu a pena e depois desapareceu. Ela, órfã, ficou entregue aos cuidados de sua tia Júlia e de seu tio Vicente.

 III

Júlia era uma senhora de trinta e três anos e única irmã da mãe de Helen. Casada com Vicente há dez anos, não tinha filhos. Morena de olhos negros, irradiava uma meiguice e uma beleza interior iluminada pela beleza exterior. Apesar de despojada e de enfrentar os percalços da vida com disposição e garra, vivia por dentro sua incompletude de mulher, pois faltava-lhe ainda sentir no ventre a doce emoção de gerar seu próprio filho. E ela acalentava esse sonho, sonho de todo casal, inalienável. Quando mentalizava a possibilidade, deixava verter lágrimas tristes, pensativa com reflexões do tipo: “Quem sabe um dia, com a ajuda da evolução da medicina e das técnicas da tecnologia moderna...”. Quanto a Helen, adotara-a quando do acidente com a irmã e a tinha como filha. Cercava-a de todos os cuidados e com a entrega plena que toda mãe tem por um filho natural, afinal em suas veias corria o mesmo sangue da sobrinha. Cuidava da menina com ternura e afeto. Falava suave, com um jeito dócil, palavras pausadas e carregadas dos simbolismos do amor, que, para quem ouvia, pareciam brotar de um sentimento vivo, originário de uma verdadeira mãe. Formavam uma família feliz, unida, de bem com a vida, cercada de paz, amor e todo conforto material.

 IV

Vicente era taxista, trinta e seis anos, estatura média, forte, de boa aparência. Estava, invariavelmente, com um chapéu tipo cowboy para esconder a calvície que se desenhava de forma expressiva. Vestia, habitualmente, sobre camisetas brancas de rodeio, um jaleco preto com botões de metal com a estampa de um alazão; usava calça jeans bem cuidadas e impecáveis e reluzentes botas de couro. Era o estereótipo, na cidade, de um homem do campo; um aficionado pelo estilo country-sertanejo. Possuía carro próprio e trabalhava na área central do bairro de Campo Alto na cidade de São Paulo. Apesar da profissão simples, como tantos milhões de brasileiros, aquele cowboy do asfalto tinha um padrão de vida estável. Um homem lutador, determinado, perseverante. Diariamente ia trabalhar com o seu táxi e, não raro, ficava até tarde da noite, para engordar o faturamento; não recusava passageiro nem temia os riscos iminentes e inerentes à profissão. Incansável, mesmo em dias chuvosos saía às ruas. Para justificar seu corre–corre, costumava repetir um bordão a quem o contestava: “pedra que rola não cria limo...”.

V

De segunda a sexta-feira, pontualmente às 12:00h, Vicente enfileirava seu carro na porta do Colégio Santa Catarina para buscar a sobrinha. E durante essa semana e meia de aula não fora diferente. Parado em frente ao portão central do colégio, viu quando ela saiu. Pôs-se de pé ao lado do carro, ergueu a mão e acenou. Helen, vendo-o, rapidamente desceu as escadas em sua direção.
–Oi tio! 
–Oi Helen. Como foi o seu dia de aula?
–Foi corrido, teve muita lição...
–Está com fome?
–Um pouco...
Ela abriu a porta do carro, entrou e sentou-se no banco traseiro, e como de hábito afivelou o cinto de segurança.

Vicente também entrou, fechou a porta, afivelou o cinco de segurança e ligou o ar condicionado. Deu a partida e saiu... 

Inácio Dantas
trecho do livro "Um Vulto entre as Cortinas"
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