II
Helen era uma garota estudiosa, embora
tímida e retraída por ter sofrido, no seu curto tempo de vida, infortúnios das
poderosas mãos do destino. Tinha um corpo franzino, pele clara, cabelos loiros
e longos e olhos castanhos que necessitavam de lentes corretoras.
Contava
apenas onze anos de idade. Enquanto as demais crianças da sua idade viviam num
mundo de alegria e brincadeiras, ela era reclusa, fechada em si mesma,
prisioneira de um passado que insistia em estar sempre presente. Trazia no
peito feridas de um sofrer que somente o futuro seria capaz de curar. Nesse
breve período de existência perdera seu pai, que a abandonara aos dois anos de
idade, quando num acidente de carro, dirigindo bêbado, causara a morte de sua
mãe. Condenado pelo acidente, cumpriu a pena e depois desapareceu. Ela, órfã,
ficou entregue aos cuidados de sua tia Júlia e de seu tio Vicente.
III
Júlia era uma senhora de trinta e três
anos e única irmã da mãe de Helen. Casada com Vicente há dez anos, não tinha
filhos. Morena de olhos negros, irradiava uma meiguice e uma beleza interior
iluminada pela beleza exterior. Apesar de despojada e de enfrentar os percalços
da vida com disposição e garra, vivia por dentro sua incompletude de mulher,
pois faltava-lhe ainda sentir no ventre a doce emoção de gerar seu próprio
filho. E ela acalentava esse sonho, sonho de todo casal, inalienável. Quando
mentalizava a possibilidade, deixava verter lágrimas tristes, pensativa com
reflexões do tipo: “Quem sabe um dia, com a ajuda da evolução da medicina e das
técnicas da tecnologia moderna...”. Quanto a Helen, adotara-a quando do
acidente com a irmã e a tinha como filha. Cercava-a de todos os cuidados e com
a entrega plena que toda mãe tem por um filho natural, afinal em suas veias
corria o mesmo sangue da sobrinha. Cuidava da menina com ternura e afeto.
Falava suave, com um jeito dócil, palavras pausadas e carregadas dos
simbolismos do amor, que, para quem ouvia, pareciam brotar de um sentimento
vivo, originário de uma verdadeira mãe. Formavam uma família feliz, unida, de
bem com a vida, cercada de paz, amor e todo conforto material.
IV
Vicente era taxista, trinta e seis
anos, estatura média, forte, de boa aparência. Estava, invariavelmente, com um
chapéu tipo cowboy para esconder a calvície que se desenhava de forma
expressiva. Vestia, habitualmente, sobre camisetas brancas de rodeio, um jaleco
preto com botões de metal com a estampa de um alazão; usava calça jeans bem
cuidadas e impecáveis e reluzentes botas de couro. Era o estereótipo, na
cidade, de um homem do campo; um aficionado pelo estilo country-sertanejo.
Possuía carro próprio e trabalhava na área central do bairro de Campo Alto na
cidade de São Paulo. Apesar da profissão simples, como tantos milhões de
brasileiros, aquele cowboy do asfalto tinha um padrão de vida estável. Um homem
lutador, determinado, perseverante. Diariamente ia trabalhar com o seu táxi e,
não raro, ficava até tarde da noite, para engordar o faturamento; não recusava
passageiro nem temia os riscos iminentes e inerentes à profissão. Incansável,
mesmo em dias chuvosos saía às ruas. Para justificar seu corre–corre, costumava
repetir um bordão a quem o contestava: “pedra que rola não cria limo...”.
V
De segunda
a sexta-feira, pontualmente às 12:00h, Vicente enfileirava seu carro na porta
do Colégio Santa Catarina para buscar a sobrinha. E durante essa semana e meia
de aula não fora diferente. Parado em frente ao portão central do colégio, viu
quando ela saiu. Pôs-se de pé ao lado do carro, ergueu a mão e acenou. Helen,
vendo-o, rapidamente desceu as escadas em sua direção.
–Oi
tio!
–Oi
Helen. Como foi o seu dia de aula?
–Foi
corrido, teve muita lição...
–Está
com fome?
–Um
pouco...
Ela
abriu a porta do carro, entrou e sentou-se no banco traseiro, e como de hábito
afivelou o cinto de segurança.
Vicente
também entrou, fechou a porta, afivelou o cinco de segurança e ligou o ar
condicionado. Deu a partida e saiu...
Inácio Dantas
trecho do livro "Um Vulto entre as Cortinas"
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