06 de Julho de 2006 - (Quinta-Feira)
Dra. Regina, em sua sala, analisava exames de ressonância magnética e redigia
os últimos laudos médicos dos seus pacientes...
O relógio marcava exatos 18:50h. Seu consultório fechara para o público, mas ela prosseguia
em seu trabalho interno, incansável, com dedicação e profissionalismo. Lá fora o
clima era frio. E garoava. O vento, buliçoso, ricocheteava na vidraça e sacudia
as persianas. Embora a temperatura da sala estivesse aconchegante, fiapos de ar
congelante entravam pelas frestas da janela e inundavam o recinto. Era o
inverno com seu manto de gelo envolvendo a cidade e dando mostras de que, além
do frio, os dias seriam curtos e as noites longas...
Compenetrada em seus afazeres, ela alternava o olhar entre os papéis e as chapas médicas. Vez
por outra o facho de luz dos faróis dos carros no lado de fora penetrava pelo
vidro entre as persianas, clareava o ambiente e se dissipava. Cabisbaixa, estava apressada em dar os diagnósticos para os pacientes. Além de tudo, da
pressão dos clientes e compromissos sociais, vivia ultimamente em meio a um
turbulento problema pessoal. Ressalte-se, não problema financeiro, esse de
certa forma era mínimo, bem administrado e estava sob controle. Eram problemas
no plural, mas de ordem passional. Sim, aqueles problemas que vêm do âmago do
ser, o amor, e quando vêm quem os controla ou os segura? Tentava mitigá-los e esgarçá-los
para que se dissipassem no subconsciente. No entanto, renitentes voltavam e a
deixava apreensiva. “Sentimentos amorosos não se esvaem assim”, pensava ela, “como
bruma da manhã aos raios do sol. Eles ficam na mente e no coração a ribombar
como ondas nos penedos à beira mar, intermitentes. Quando, nas inter-relações
matrimoniais, a teia dos sentimentos não têm os nutrientes do amor, os
filamentos rompem-se facilmente. E é irreatável. Algo como um tendão que se
rompe e as duas pontas se separam e se distanciam”. Ela vivia esse momento
crítico. Sentia a distância, o esfriar das labaredas que ardem nos corpos dos
amantes, pois o fogo não queima nas cinzas, e quando a chama do amor
extingue-se, a separação se cauteriza. É causa e efeito, um caminho bifurcado
para dois destinos em dois pontos cardeais distantes e divergentes. Assim findam-se
belas histórias principiadas no altar e sacramentadas na certidão conjugal...
Por mais que ela tentasse dividir-se entre trabalho e amor, de forma
racional e equilibrada, uma das duas opções ficava mais prejudicada que a outra,
posto que o coração é um só, o pêndulo do ser, e tende a agir numa direção que
ele próprio controla, e nós somos os controlados. E o coração dela era uma
usina de onde ultimamente irradiava pouco lúmen de felicidade e muita escureza
de aborrecimento. Não obstante, naquele momento o trabalho sobrepunha-se e assumia
um primeiro plano. Haviam dores a serem abrandadas, doenças a serem curadas,
vidas a serem salvas. E “salvar” a sua própria vida, naquele estágio, ficara em
segundo plano... Tinha de carregar o estigma - divorciar-se do marido e
conviver em harmonia com seu novo amor, outro médico, também com um divórcio em
fase final.
Por um segundo, cansada, empilhou as chapas médicas, empurrou o bloco de
receitas médicas para o canto da mesa e pôs-se a refletir sobre as últimas
cenas com o marido em casa, quando ele em voz alta vociferou com o dedo em
riste, em tom ameaçador:
-Não dá mais Regina. Está insuportável. Definitivamente nosso casamento
é um fracasso!
-É um fracasso, Martin, porque você esqueceu seu papel de pai e de
marido. – Ela retrucou olhando-o fixamente nos olhos, faiscantes, temerosa de
alguma reação abrupta, a qual, por mais que discutissem, nunca se efetivara.
Mas ela temia, pois no trabalho ele tinha promovido algumas confusões
intempestivas.
A lembrança desse ríspido diálogo estava latente em sua memória, desde o
início do ano, quando ele resolvera “definitivamente fazer as malas, deixar a
família e morar num apart-hotel “provisoriamente””, segundo lhe dissera.
Ela, por sua vez, decidira reerguer-se emotivamente e construir uma vida
nova. Recuperar o tempo e o amor perdido, dar-se uma chance de ser feliz
novamente. Sabia que havia uma grande lacuna de alegrias a ser preenchida e um amanhã
de desafios que deveria enfrentar. E queria, não contorná-lo, mas transpô-lo. Dentro
de si a emoção se movia mais forte que a razão. E o que um coração desamado não
faz ao encontrar um novo amor?
Ela estava sozinha no consultório. Os últimos clientes, retardatários,
há muito foram atendidos e se retiraram. Sua secretária cumprira o horário de
expediente e também a deixara, ouvindo dela a enganosa promessa “também estou
indo, já, já...” E se passara mais de uma hora, desde então...
Lá fora a garoa aumentava, o vento recrudescia e desfolhava a verdejante
copa dos fícus no pequeno estacionamento na entrada do consultório, espalhando
folhas na calçada num redemoinho intenso. A recepção da clínica estava clara. E
vazia.
De repente, rompendo o silêncio, o telefone
tocou. Ela espreguiçou-se e retirou o aparelho do gancho. Porém, ao atender só
deu tempo de ouvir, do outro lado da linha, o som de uma respiração abafada e
em seguida o “toque” de “ocupado”. Pensou, “tem gente que não tem nada pra
fazer e fica brincando com o telefone uma hora dessas...”. Bocejou, esfregou os
olhos, colocou os óculos e conferiu o relógio. Disse para si mesma que “já é
hora de ir” e deu por encerrado os trabalhos. Recolheu os exames e as fichas médicas
e os colocou nas pastas do arquivo. Fechou as cortinas da janela e trancou as
gavetas da mesa. Demorou-se mais alguns minutos arrumando-se para sair. Desligou
o computador, a impressora e apagou as luminárias da sala. Nesse exato
instante, furtivamente, um vulto a surpreendeu por trás quando girava a chave para
fechar a porta da sala. Seu corpo, agarrado violentamente, foi erguido no ar
por braços fortes e, embora lutasse contra o agressor e gritasse por socorro,
ninguém lá fora podia ouvi-la. A rua estava erma. O vento lá fora sibilava e a porta de entrada
estava trancada. Nenhuma alma vivente passava por ali naquele momento para que
seus gritos de agonia fossem ouvidos. Ela estava só, suspensa por braços
estranhos, pernas bailando no ar, chutando seu agressor, paredes, móveis, porta...
Tentava se desvencilhar, mas sua força era limitada. Estava, lentamente, sendo
sufocada e sua voz, pouco a pouco, se esvanecendo junto com uma sôfrega respiração.
Transcorreram, talvez, apenas dois minutos... Uma eternidade para o agressor;
um breve instante para a vítima. Seu corpo, sob as vestes brancas da paz, jazia
sob a violência, estendido no chão junto à porta da sala entreaberta. O
agressor, para completar “seu trabalho”, abriu a bolsa que ela levava e
subtraiu valores - dinheiro, cheques, cartões de crédito... Desprezou apenas o
aparelho celular. Vasculhou, ainda, seu corpo e apossou-se das suas joias. O
relógio que ela tinha no pulso, cuja pulseira se rompera, também desprezou, na
luta ficou danificado por uma pancada na parede. Por fim, antes de evadir-se,
tomou derradeiras precauções. Dirigiu-se ao sistema de “circuito interno de TV”,
subiu numa cadeira e quebrou abruptamente a câmera. Pouco se preocupou que seu
rosto fosse ou não gravado, pois o escondia sob um “gorro de motoqueiro”.
Também não se incomodou com o fato de manusear os objetos, pois usava luvas de
couro para não deixar impressões digitais. Em seguida desligou o aparelho de
vídeo-cassete, desconectou os cabos e fios. Ejetou a fita que gravara sua
entrada no recinto e os atos que praticara, atirou-a com ímpeto contra o chão e
a pisoteou. Pegou uma sacola plástica da clínica e recolheu dentro os
fragmentos da fita. Desligou as luminárias, encostou a porta e saiu. Seu carro
estava à porta, estacionado. Em seguida, cantando os pneus, tomou a avenida em direção
central e se evadiu. Duas quadras à frente parou rapidamente ao lado dum prédio
em construção, onde sob a calçada havia uma caçamba de entulhos, e livrou-se da
sacola atirando-a dentro, entre o lixo e os restos de construção...
-x-
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